Para garantir repasse federal, Prefeitura de SP exige jornada de 40 horas de médicos da família com vínculo antigo e ameaça demissões
30/07/2025
(Foto: Reprodução) Médico de família realiza atendimentos emergenciais ou de rotina
Divulgação
Desde 2024, uma portaria do Ministério da Saúde define que médicos da Estratégia Saúde da Família cumpram jornada mínima de 40 horas semanais para que as prefeituras recebam o repasse integral de até R$ 18 mil mensais por equipe.
Em São Paulo, no entanto, a medida provocou um impasse: médicos de família que foram contratados para trabalhar por 20 horas semanais estão sendo pressionados a dobrar a carga horária ou deixar os cargos caso não concordem com a mudança. Entidades médicas criticam a substituição de profissionais experientes e alertam para prejuízos no vínculo entre médicos e pacientes.
🔍Médico de família é o profissional responsável pelo cuidado integral e contínuo da saúde das pessoas, acompanhando desde a prevenção até o tratamento de doenças, sempre considerando o contexto familiar e social do paciente.
A Secretaria Municipal da Saúde nega as demissões, mas ressalta que os profissionais podem permanecer em suas funções se aderirem à jornada de 40 horas semanais. Diz também que, "desde 2024, tem mantido diálogo com as Organizações Sociais (OSSs) parceiras e realizado reuniões com o MS [Ministério da Saúde] para tratar do tema" (veja nota completa abaixo).
Já o Ministério da Saúde afirma que, diante da escassez de profissionais, o programa permite configurações diversas das equipes, com jornadas de 20 horas, 30 horas ou 40 horas semanais. Segundo a pasta, "não há qualquer redução ou restrição no financiamento federal para as equipes de atenção primária à saúde que justifique a demissão ou mudança na jornada de médicos na rede municipal de São Paulo" (veja nota completa abaixo).
Atualmente, a rede municipal de saúde de São Paulo conta com 1.715 equipes da Estratégia Saúde da Família vinculadas às Unidades Básicas de Saúde. Dessas, 1.597 médicos atuam com jornada de 40 horas semanais, o que representa 93% do total.
Já as demais equipes são compostas por dois médicos que trabalham 20 horas semanais cada um, em vez de um único profissional com 40 horas. A substituição desses profissionais pode impactar diretamente a rotina das unidades, ressalta Guilherme Barosa, diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp).
“Essas demissões abrem espaço para a quarteirização, que já está acontecendo. Além disso, desmonta a organização dos trabalhadores da saúde na Zona Oeste, onde esses médicos de 20 horas se concentram”, afirmou.
Em entrevista ao g1, um médico de família, que preferiu não se identificar, relatou que será desligado de uma UBS na Zona Sul após recusar a ampliação da carga horária. A unidade conta com dois médicos que atuam 20 horas semanais, em vez de apenas um com 40 horas.
“No final de junho fomos informados de que todos os médicos com carga horária de 20 horas seriam desligados, devido à falta de repasse do governo. A decisão foi comunicada unilateralmente, sem abertura para diálogo ou negociação. A alternativa apresentada foi a ampliação da jornada para 40 horas semanais. Caso não aceitássemos, seríamos desligados”, disse.
“Eu e a outra médica que também trabalha 20 horas optamos por não aumentar a carga horária e, por isso, fomos informados de que seremos desligados nos próximos dias”, afirmou.
O profissional atua há três anos na unidade e destaca a importância do trabalho exercido a longo prazo nesse tipo de atuação. “Como é estratégia da saúde, cada equipe é responsável por uma área geográfica do bairro. Essa minha colega, que está há mais de 10 anos, conhece as mesmas famílias durante todo esse tempo”, disse.
Outra médica afirmou ao g1 que há um clima de ameaça para demissões e não houve diálogo. "Eu trabalho há quase dois anos, mas temos colegas que estão há mais de 10 anos no território. A média de permanência de médicos 20 horas é 3 anos, enquanto 40 horas é de 8 meses", afirmou a profissional, que prefere não se identificar.
"Acho um desrespeito ao trabalho que vem sendo feito na região, não considera os vínculos com território, população e ensino", afirmou a profissional. "Não cria condições para a fixação dos médicos. É praticamente impossível cumprir 40 horas semanais na atual proposta da SMS, só veem números não estão interessados na qualidade", ressaltou.
O que dizem as entidades médicas
Guilherme Barbosa, do Simesp, acrescenta que a estimativa é que 17% das equipes da Saúde da Família da capital tenham médicos com carga de 20 horas semanais, e que todos esses profissionais estão sendo pressionados.
“Esse número é difícil de precisar. Como os médicos estão espalhados por diversas regiões e vinculados a diferentes organizações sociais, é complicado obter dados exatos. O que sabemos é que cerca de 17% das equipes são compostas por médicos que trabalham 20 horas, e todos eles estão sendo demitidos, remanejados ou pressionados a aumentar a jornada.”
Segundo Guilherme, o repasse do Ministério da Saúde é parcial e poderia ser compensado por outras estratégias, que não estariam sendo consideradas pela gestão municipal.
“O repasse do ministério é irrisório diante do volume de gastos da Secretaria Municipal da Saúde. A Atenção Primária à Saúde (APS) é uma responsabilidade do município. O repasse é apenas uma espécie de subsídio, uma parte do orçamento”, explica.
Ele complementa: “Esse orçamento ainda pode ser ampliado de outras formas, como cadastrando residentes de Medicina de Família e Comunidade ou de enfermagem na Atenção Primária à Saúde. Cada residente traz um repasse significativo, suficiente para suprir essa diferença. Mas a secretaria não realiza esse cadastro. O ministério ofereceu outras alternativas, e o município alega que são opções inseguras”.
O presidente da Associação Paulista de Medicina de Família e Comunidade (APMFC), Guilherme Antoniacomi, também acompanha os casos. Ele afirmou ao g1 que, desde o início do ano, tem recebido relatos de médicos da Estratégia Saúde da Família sendo pressionados pela Secretaria Municipal da Saúde para adequar a carga horária para 40 horas.
“Recebemos denúncias sobre demissão de médicos que se recusaram ampliar a jornada ou, em outros casos, sobre mudanças contratuais que resultaram em perda de benefícios e aumento da carga de trabalho", conta.
E completa: "Muitos profissionais com vínculos antigos nos territórios foram desligados e substituídos. Consideramos que a forma como a política de conformidade à Portaria GM/MS nº 3.493/2024 está sendo conduzida pela gestão municipal prejudica médicos e pacientes, comprometendo a qualidade do atendimento".
Guilherme relatou que a associação tem buscado uma solução alternativa, que assegure a continuidade dos profissionais que já têm vínculo com as comunidades.
O Sindicato dos Médicos pretende realizar uma assembleia nesta quarta-feira (30) para decidir as próximas ações. O movimento tem reunido estudantes de medicina, residentes e usuários do SUS, com reuniões e abaixo-assinados em andamento.
Também está prevista para esta quarta uma reunião entre a secretaria e o Simesp para tratar do caso.
O que diz a Secretaria Municipal da Saúde
"A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que, conforme a Portaria GM/MS nº 3.493/2024, o Ministério da Saúde (MS) estabeleceu uma nova metodologia de cofinanciamento federal para a Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Entre as mudanças, foi revogada a normativa que permitia a contratação de médicos nas equipes de Saúde da Família (eSF) com carga horária inferior a 40 horas semanais. Os profissionais que compõem as equipes eSF (médicos, enfermeiros, técnicos ou auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde) podem permanecer em suas funções se aderirem à jornada de 40 horas semanais.
Desde 2024, a SMS tem mantido diálogo com as Organizações Sociais (OSSs) parceiras e realizado reuniões com o MS para tratar do tema. A pasta esclarece que não houve demissões e, no momento, permanece a orientação de que todas as equipes estejam alinhadas à carga horária definida pela normativa vigente. Uma avaliação territorial está sendo conduzida para uma melhor acomodação dos profissionais.
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que, no momento, das 1.719 equipes, atualmente 1.597 médicos atuam na jornada de trabalho de 40 horas, o que equivale a 93,03%. Além disso, uma reunião entre a pasta e o Simesp está prevista para ocorrer nesta quarta-feira (30)."
O que diz o Ministério da Saúde
"Não há qualquer redução ou restrição no financiamento federal para as equipes de atenção primária à saúde que justifique a demissão ou mudança na jornada de médicos na rede municipal de São Paulo – até porque o montante repassado pelo Ministério da Saúde saltou 60% em relação a 2022, chegando a mais de R$ 1 bilhão por ano.
Com regras consolidadas desde 2017, o programa permite configurações diversas das equipes, com jornadas de 20, 30 ou 40 horas semanais, diante da escassez de profissionais.
Não há impedimentos para que municípios implantem esquipes com carga horária diferenciada e acessem os incentivos adicionais criados pelo Ministério da Saúde para ampliar o atendimento em regiões de maior vulnerabilidade, como periferias das grandes cidades e regiões de difícil acesso no interior."